Como o aquecimento global pode contaminar arroz e elevar risco de cancer
As mudanças climáticas e a contaminação por arsênio formam uma combinação perigosa para o arroz, alimento que sustenta metade da população mundial.
Um estudo experimental com modelagem de risco foi publicado na revista The Lancet Planetary Health e revisões recentes foram divulgadas pela Science of the Total Environment.
Esses documentos mostram que o aumento da temperatura, do gás carbônico e do ozônio na atmosfera pode intensificar a liberação de arsênio no solo, elevar sua concentração nos grãos e, ao mesmo tempo, reduzir o teor de proteínas e micronutrientes como ferro e zinco.
O que é o arsênio?
O arsênio é um metaloide naturalmente presente no solo e na água, mas que se torna perigoso em sua forma inorgânica, altamente tóxica. Classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como cancerígeno para humanos, ele pode se acumular em plantações irrigadas com água contaminada — como ocorre nas lavouras de arroz — e entrar na cadeia alimentar por meio dos grãos.
O cenário é mais grave em países asiáticos, onde solos e águas subterrâneas já têm altos níveis de arsênio, mas especialistas ouvidos pelo g1 alertam que o fenômeno exige vigilância também em outras regiões produtoras, inclusive no Brasil.
Trabalhadores carregam um trator com fardos de palha de arroz em um arrozal em Mansa, no estado de Punjab, norte da Índia
REUTERS/Bhawika Chhabra
“Não é um estudo que mede o arroz brasileiro, e sim um alerta mecanístico e de cenário”, explica o endocrinologista Clayton Luiz Dornelles Macedo, do Einstein Hospital Israelita e do Instituto Cohen.
“Os dados mostram o que pode acontecer quando o aquecimento global e a contaminação por arsênio atuam juntos: o grão continua parecido, mas se torna menos nutritivo e potencialmente mais tóxico.”
Clima acelera liberação de metais e empobrece o grão
O estudo indica que o aumento da temperatura do solo estimula a ação de microrganismos que liberam arsênio em áreas alagadas, como as plantações de arroz. O metaloide, altamente tóxico em sua forma inorgânica, é então absorvido pelas raízes e acumulado nos grãos.
Além de aumentar o risco de câncer em populações expostas a áreas contaminadas, a interação entre calor, gás carbônico e ozônio prejudica o metabolismo do arroz, com perdas de até 40% na produtividade e queda de aminoácidos essenciais.
Um agricultor colhe arroz em um campo em Chikusei, província de Ibaraki, Japão
REUTERS/Kaori Kaneko
“Essas alterações reduzem a densidade nutricional do alimento e podem agravar deficiências de ferro e zinco, especialmente em populações que dependem do arroz como principal fonte calórica”, afirma o endocrinologista Augusto Santomauro Junior, da Beneficência Portuguesa de São Paulo e médico assistente da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC).
Ele alerta que a combinação de deficiência de micronutrientes e exposição crônica a metais tóxicos tem efeito cumulativo sobre o metabolismo humano.
“Carências de ferro e zinco afetam a produção de hormônios da tireoide e a ação da insulina. Não causam diabetes nem hipotireoidismo sozinhas, mas reduzem a resiliência do organismo e agravam doenças já existentes.”
Um agricultor separa o arroz de uma plantação em Lalitpur, Nepal
REUTERS/Navesh Chitrakar
Grão ‘igual’ que engana o prato
O perigo está no que não se vê. O arroz contaminado por arsênio pode apresentar menos amilose (tipo de amido que ajuda a manter o índice glicêmico estável) e mais arsênio inorgânico, sem alteração visível de cor, textura ou sabor.
“Para o consumidor, o arroz parece o mesmo. Mas dentro dele há menos proteína, menos ferro e zinco, e um contaminante que o corpo acumula ao longo do tempo”, explica Macedo. “É o que chamamos de fome oculta: o alimento ainda enche o prato, mas não entrega os nutrientes necessários.”
Nas análises laboratoriais, o arsênio interfere em vias celulares ligadas à produção de energia e à regulação hormonal. Estudos mostram que, em pequenas doses, pode afetar o pâncreas (reduzindo a secreção de insulina), alterar a função da tireoide e aumentar o estresse oxidativo — mecanismos que contribuem para o surgimento de diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.
Agricultores peneiram arroz em um arrozal em Lalitpur, Nepal
REUTERS/Navesh Chitrakar
Risco maior na Ásia, mas Brasil deve monitorar
De acordo com os autores do estudo, países como Bangladesh, Índia, Vietnã, China e Mianmar concentram as áreas mais críticas, com irrigação feita por águas subterrâneas ricas em arsênio.
Nos cenários mais pessimistas modelados pelos pesquisadores, em regiões asiáticas com solos e águas já contaminados, o consumo contínuo de arroz poderia representar até 65 casos adicionais de câncer a cada 10 mil pessoas ao longo da vida até 2050.
No Brasil, o risco é muito menor, mas não inexistente. “Temos bolsões de solo e água com arsênio elevado, sobretudo em áreas de mineração, como em Paracatu (MG) e partes do Sul, mas não há evidência de um ‘desastre silencioso’ generalizado”, diz Macedo.
“Estudos brasileiros mostram níveis abaixo dos limites internacionais. O que precisamos é manter vigilância e políticas agrícolas seguras.”
Uma imagem de drone mostra uma colheitadeira colhendo arroz em um campo em Chalastra, Grécia
REUTERS/Alexandros Avramidis
Como reduzir a exposição
Santomauro reforça que não há motivo para abandonar o arroz — base da alimentação brasileira. “Em regiões sem histórico de contaminação, ele pode ser consumido com segurança”, diz. “Mas vale seguir boas práticas domésticas: lavar o arroz, cozinhar com bastante água e descartá-la, o que ajuda a reduzir o teor de arsênio.”
O endocrinologista relembra que arroz integral tende a reter mais arsênio (por causa da camada externa do grão), embora também tenha mais fibras e minerais.
“O ideal é variar as fontes de carboidrato — feijão, milho, mandioca, batata, aveia — e combinar o arroz com leguminosas, vegetais e proteínas, para evitar carências nutricionais.”
O que dizem os cientistas
O artigo científico revisou dezenas de estudos experimentais com diferentes variáveis climáticas (CO₂, ozônio e temperatura). Os autores observaram que, sob cenários extremos, as mudanças combinadas reduzem o ferro e o zinco nos grãos e elevam a proporção de arsênio inorgânico — o mais tóxico.
Eles pedem o desenvolvimento de cultivares de arroz resistentes ao acúmulo de arsênio e práticas agrícolas adaptadas ao aquecimento global, como irrigação intermitente e manejo adequado do solo.
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