A médica neonatologista Lilia Embiruçu lida diariamente com casos complexos vindos de todo o Estado da Bahia
Vitor Serrano/ BBC
Alerta: Essa reportagem contém depoimentos que podem sensibilizar ou entristecer.
Ao lado de uma grande caixa de papelão, a médica neonatologista Lilia Maria Caldas Embiruçu tira, uma a uma, roupinhas coloridas feitas de tricô e crochê.
“Aqui é um gorro”, diz ela, exibindo um pequeno capuz azul bebê, do tamanho de dois dedos da mão unidos. “Nem sempre é possível vestir, de tão pequenos que são, então colocamos nessa espécie de saco de dormir”, conta, mostrando um quadrado verde, do tamanho de um guardanapo de papel.
As roupas foram tricotadas para servirem em bebês minúsculos, que nasceram muito prematuramente e não sobreviveram, ou que já nasceram sem vida, em decorrência de malformações, questões genéticas ou até mesmo razões desconhecidas. “Você não encontra roupas desse tamanho nas lojas”, conta a médica. “Por isso temos que fazer, para que eles sejam enterrados com dignidade.”
Lilia Embiruçu trabalha no setor de neonatologia do Hospital Geral Roberto Santos, em Salvador. Lida diariamente com casos complexos que chegam de todo o Estado da Bahia. Mas, aos 65 anos, sua vasta experiência, tanto pessoal como profissional, a levaram para um lugar diferente na medicina.
Formada em Medicina pela Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública, perdeu o pai no dia da formatura. “Ele dizia que só morreria no dia em que eu me formasse”, conta. Quando ela subiu no palco para receber o diploma, o pai teve um infarto fulminante.
Na década de 1980, quando concluiu a faculdade, o Brasil, assim como o resto do mundo, vivia a epidemia de Aids. “Nós trabalhávamos naquela época para evitar a contaminação vertical do HIV, ou seja, de mãe para filho”, conta. “Mas muitos bebês e mães acabavam morrendo.”
Foi ali que ela começou a trabalhar com cuidados paliativos, “antes mesmo deste nome existir”.
O trabalho, que envolve acolhimento, cuidado na comunicação de notícias difíceis, foco na qualidade de vida e no controle dos sintomas, ganhou força no Brasil no início dos anos 2000. Foi somente no ano passado, porém, que o Ministério da Saúde criou uma política de cuidados paliativos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Mais recentemente, em maio, foi sancionada a lei que cria a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental. A norma assegura cuidados humanizados e apoio psicossocial a mulheres e parentes diante da perda de bebês durante a gestação, no parto ou logo após o nascimento.
Entre as medidas previstas, estão a garantia de alas separadas em maternidades para mães em luto, o direito à presença de acompanhante durante o parto de natimorto e o acesso a assistência social para os trâmites legais.
A lei, que entrará em vigor no fim de agosto, também obriga os serviços de saúde públicos e privados a oferecer capacitação de profissionais de saúde para lidar com o luto parental.
A médica faz pequenos caixões e minúsculas roupas para bebês extremamente prematuros
Arquivo pessoal/ Lilia Embiruçu
A visão de Lilia para esse tipo de cuidado humanizado sempre fez com que ela enxergasse além da doença. “A mãe que tem um bebê natimorto [quando o feto está morto dentro do útero], é como se ela mesma fosse a urna desse bebê”, diz.
“Você ainda nem se ajustou como mãe e já tem que se ajustar como mãe de um bebê que vai morrer. São muitas questões existenciais que permeiam esse luto.”
Motivada por essas reflexões, ela foi estudar cuidados paliativos e, mais recentemente, se formou em capelania hospitalar laica, uma atividade que ainda não é regulamentada como profissão. Segundo Lilia, o curso aborda filosofia, religião, teologia, espiritualidade. Ela afirma que não tem relação com nenhuma religião específica, mas com uma abordagem espiritual, que transcende a religião.
O objetivo, diz ela, é tentar abordar as famílias de um bebê que vai morrer em breve, ou que acabou de partir, de uma maneira mais humanizada. “A gente trabalha para dar vida enquanto vida o bebê tiver”, diz. E para isso, ela inventa recursos inimagináveis.
‘Levei o mar até o hospital’
“Não deixe meu filho sofrer e não me deixe aqui sozinha” são os pedidos mais comuns que a médica diz ouvir. Mas há alguns mais inusitados.
Certa vez, uma mãe de um bebê na incubadora pediu que ele fosse levado para conhecer o mar. “Eu não tinha como liberar, era impossível, mas sabia que aquilo era importante para ela”, diz a médica.
Ela foi até um vidraceiro e pediu para ele fazer uma caixa de vidro. “Ele disse que faria e me entregaria na semana seguinte, mas aquele bebê não tinha todo esse tempo”, conta. “Eu disse que era para aquele dia. Ele só aceitou fazer depois que contei toda a história.”
Com a caixa de vidro na mão, ela encheu de água do mar, acrescentou areia e conchas e comprou uma nova briga para conseguir entrar na UTI com aquele objeto. E conseguiu. “A mãe ficou emocionada quando chegou e viu que o mar estava ali, ao lado do filho.”
A médica exibe gorros minúsculos, para bebês que nasceram muito prematuramente e não sobreviveram
Vitor Serrano/BBC
Mini-caixões
Além das minúsculas roupas, Lilia faz pequenos caixões. São caixas de madeira, um pouco menores que uma caixa de sapato, que ela mesma enverniza e decora. Com retalhos dos vestidos de noiva que o filho estilista faz, ela costura pequenos colchões de cetim branco. E se a família for católica, ela faz um pequeno terço.
“Esses pais dentro de uma UTI neonatal têm seu direito à parentalidade sequestrado”, diz. “Isso assusta demais.”
O trabalho acaba sendo o de transformar a morte prevista em uma vida vivida pelo tempo que for. Para isso, são produzidas caixas de memórias, com fotos, cartas da família, um pendrive com os batimentos do coração do bebê, uma imagem de um ultrassom, e o que mais a família entender como lembrança.
Mas se lembrança nenhuma houver, a médica também inventa.
Ela se recorda de um caso de uma mãe grávida de um bebê com várias malformações e que morreria assim que nascesse. “Eu sempre digo para os pais fazerem fotos do bebê fora da barriga, mesmo que eles não queiram ver na hora, mas para ter como lembrança”, diz a médica, que se voluntaria a fazer as fotos.
Na Inglaterra, a ONG Remember my Baby faz retratos profissionais de bebês que faleceram e os entrega aos pais gratuitamente.
Em entrevista à BBC News Brasil em 2023, a psicóloga Daniela Bittar, especializada em luto materno, falou sobre a importância de lembranças como essas para o processo do luto.
“Quando uma mãe perde um filho com 2, 3 anos, as pessoas se comovem exatamente por se colocarem no lugar dela e perceberem o tamanho dessa dor com nitidez. Essa criança tinha nome, tinha memórias afetivas com várias pessoas”, disse.
“Você ainda nem se ajustou como mãe e já tem que se ajustar como mãe de um bebê que vai morrer.”
Vitor Serrano/ BBC
“Quando o bebê morre intraútero, esse bebê não foi visto, não construiu memória afetiva com ninguém, a não ser com essa mãe. Essa mulher está ali completamente atrelada a essa criança de forma psíquica, visceral, mas não tem a dor e o luto compreendidos pela sociedade.”
Na história contada por Lilia, a mãe não quis fazer a foto do bebê e seu desejo foi respeitado.
No entanto, meses após o nascimento seguido da morte do bebê, a mãe procurou a médica. “Ela queria a todo custo ver o filho, pedindo para exumar o corpo”, diz. Sabendo que não seria possível, Lilia disse que pensaria no caso.
“Fui até a polícia e pedi ao papiloscopista para fazer um retrato falado do bebê”, conta a médica. Os pais não aceitaram logo de cara, já que nunca haviam visto o rosto do filho. Mas Lilia os convenceu. “Eu disse para eles descreverem o filho do jeito que eles o imaginavam.” E assim, entre lágrimas na delegacia, o papiloscopista fez o desenho e a família saiu com a única imagem do filho nas mãos.
As histórias que a médica conta são marcadas pela morte, mas tratam-se, na realidade, de muita vida. São maneiras que ela encontra para que o paciente e seus parentes vivam o tempo que há, não importa se são anos ou minutos.
A despedida, na visão dela, é um ritual importante para cravar a existência. Por isso, ela acredita no poder das minúsculas roupas e do pequeno caixão. E, se nem mesmo houver um corpo para se despedir, o simbolismo, ainda assim, persiste.
“Comprei uma briga com uma enfermeira para conseguir pegar, no meio do saco de roupa suja do leito, um absorvente sujo”, conta Lilia. Era ali, que a mãe havia expelido o feto perdido. E foi aquele o objeto enterrado e que simbolizou a despedida.
“A gente olha muito para o biológico e pouco para o biográfico da família”, diz. “Na realidade, o caminho é inverso.”
As marcantes experiências da médica que prepara o último adeus de bebês
