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A influenciadora e fisioterapeuta Raquel Castanharo nunca se viu como uma corredora de longas distâncias. Durante oito anos, evitou a ideia de enfrentar uma maratona. Achava que os treinos seriam longos demais, duros demais, pesados demais. Até que decidiu tentar. Ao se permitir ser mais lenta, descobriu um prazer novo na corrida: a ausência da pressão do cronômetro.
Vieram treinos de 18 quilômetros em uma segunda-feira, de 30 em um sábado. Vieram também a rede de apoio em casa, o marido que cuidava dos filhos quando ela chegava exausta, a rotina que encaixava o impossível.
Tudo caminhava para o dia em que cruzaria pela primeira vez a linha dos 42,195 km. Mas, 17 dias antes, veio outro marco: o diagnóstico de câncer de mama.
O diagnóstico às vésperas
Raquel já sentia um nódulo havia anos, desde a pandemia de coronavírus. Exames anteriores diziam não ser nada, e, aos poucos, ela espaçou o acompanhamento. Uma ginecologista desconfiou, pediu novos testes, e na ressonância magnética veio o encaminhamento para a biópsia. Foi então que recebeu a notícia.
“Na hora, me senti muito culpada por ter espaçado os exames de rotina. Até porque sou profissional da saúde. Mas precisei aprender lidar com a culpa. Eu tinha duas escolhas: ficar mal e só ou ficar mal e ajudar pessoas”, conta.
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Desde que compartilhou a história nas redes sociais, conheceu gente que também vinha adiando os exames de rotina. “Muita gente fala que marcou consulta depois que ouviu meu relato.”
O tumor, classificado como luminal B, tinha 5 centímetros e crescia lentamente. Era, ao mesmo tempo, persistente e pouco agressivo. O tratamento seria longo: quimioterapia antes da cirurgia, operação e, depois, radioterapia. Uma maratona dentro da maratona.
Esse subtipo, segundo o oncologista da Oncoclínicas e da Americas Health Foundation Stephen Stefani, apresenta receptores hormonais e costuma ter uma taxa de multiplicação celular mais alta, o que o torna um pouco mais agressivo do que o luminal A. Ainda assim, é considerado uma doença de prognóstico intermediário, com boas chances de cura, especialmente quando identificado precocemente.
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A corrida como respiro
Os médicos autorizaram Raquel a correr a maratona do Rio de Janeiro, já que o tratamento só começaria dali a algumas semanas. Entre a biópsia que confirma o câncer e a definição da estratégia terapêutica, há sempre um intervalo inevitável: é preciso entender que tipo de tumor é, quais mutações carrega, se está restrito à mama ou já se espalhou para outros órgãos. Essa bateria de exames pode levar mais de um mês — e foi nesse limbo que ela alinhou a largada.
Durante os 42 quilômetros, a corrida funcionou como anestesia da mente. “Se tem uma coisa que não deixa você pensar em problema é uma maratona. Pessoas gritavam meu nome, pegavam na minha mão, me olhavam nos olhos. Mulheres que já tiveram câncer de mama me diziam: ‘Tive câncer e me curei, olha eu aqui correndo’”, relembra.
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No percurso, encontrou os filhos duas vezes. O mais velho, surpreso com a vibração da torcida, resumiu em uma frase: “Mamãe, as pessoas gritam seu nome e conhecem a gente”. Para ela, não haveria estreia melhor: queria correr no Brasil, com eles, e só o Rio oferecia aquela energia.
Em julho, começou a sequência de quimioterapias: as chamadas vermelhas, a cada 15 dias. Vieram o enjoo, a fadiga, a queda de cabelo. Vieram também os aprendizados: caminhar ajuda a quebrar o ciclo da exaustão, a terapia ajuda a aliviar o peso da culpa.
A quimioterapia, explica o oncologista Stephen Stefani, é usada antes da cirurgia justamente para reduzir o tumor, facilitar o procedimento e avaliar em tempo real como o câncer reage ao tratamento. Em quatro sessões, Raquel viu o nódulo diminuir pela metade. Nos tumores luminais B, a resposta costuma ser parcial, mas já suficiente para tornar a operação menos agressiva e reduzir o risco de recidiva.
Agora, ela começa um ciclo de quimioterapias brancas —também potentes, mas com menos efeitos colaterais. Ao fim do ano, passa pela cirurgia e, em janeiro, inicia a radioterapia.
Fadiga contra a fadiga
Mesmo em meio aos efeitos colaterais, Raquel não parou de se movimentar. Caminhadas leves, treinos de fortalecimento e sessões na esteira viraram aliados contra a fadiga. A corrida, por enquanto, ficou de lado — piorava o enjoo. Mas ela já traça um plano: quando vier a fase da quimioterapia branca, que costuma trazer menos reações, pretende voltar a correr como iniciante.
A medicina confirma essa escolha. Estudos mostram que a atividade física reduz a fadiga causada pela quimioterapia, melhora a resposta ao tratamento e pode até diminuir o risco de recidiva. Salvo restrições pontuais no pós-operatório ou em casos específicos de comorbidades, os exercícios hoje são considerados parte do próprio tratamento oncológico.
Marido e filhos têm sido o maior apoio de Raquel
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A segunda linha de chegada
Raquel fala: teve medo de morrer; teve também crise de vaidade. “As mulheres sentem a pressão estética. Eu evitava doce, queria ser magra. Agora como bolo sem culpa, porque comer doce melhora o enjoo. Meu corpo está mudando, mas entendo que é parte do processo.”
O marido, diz, é a rocha. “Ele é estável, otimista. O mundo pode estar acabando e ele está bem, cuida de mim, cuida da casa e das crianças. Isso é raro e precioso.”
O filho, amoroso, aprendeu também a cuidar: “Quando estamos brincando e começo a ficar ofegante, pela fadiga, ele diz: ‘mamãe, agora vai descansar’. Mas as crianças não têm dimensão do quão grave é –e que bom! Quem dera a gente também não tivesse”.
A forma como a família encara a doença também reforçou um pensamento que já a acompanhava: na corrida, não se trata mais de tempo ou de performance, mas de conseguir estar presente — mesmo nos dias mais difíceis.
“Performance pode ser simplesmente sair do sofá naquele dia, sair da cama. Hoje, para mim, correr é conseguir levantar enjoada depois de uma quimioterapia pesada e trotar dez minutos bem levemente. Isso é superação. E imagina um paciente que nunca correu, que ouve do oncologista que precisa se mexer, dá um trote de 15 minutos e fica feliz. Conta, sim. Corrida também é isso: celebrar cada passo possível.”
Mamografias diminuíram nos últimos 10 anos em SC e mortes por câncer de mama aumentaram