
Tylenol na gravidez e autismo: o que se sabe
O procurador-geral do Texas, Ken Paxton, entrou com uma ação judicial nesta terça-feira (28) contra a Kenvue — atual fabricante do Tylenol — e sua antiga controladora, a Johnson & Johnson — acusando as empresas de enganar consumidores ao vender o analgésico “mesmo sabendo de supostos riscos de autismo em bebês quando usado por gestantes”.
Segundo o jornal americano The Washington Post, o processo foi movido em um tribunal estadual e faz do Texas o primeiro estado norte-americano a adotar oficialmente essa tese, impulsionada por discursos recentes do presidente Donald Trump e do secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr. Ambos têm vinculado o uso do paracetamol (acetaminofeno) na gravidez a distúrbios do neurodesenvolvimento — sem respaldo científico.
Ligação política e discurso de ‘saúde patriótica’
A ação surge um mês após Trump alertar publicamente gestantes a evitarem o Tylenol, ecoando a narrativa de Kennedy Jr. de “epidemia de autismo” nos Estados Unidos. Ambos são apontados por pesquisadores como responsáveis por difundir desinformação sobre o tema.
Paxton, aliado de Trump e candidato ao Senado, afirmou ao anunciar o processo:
“Ao responsabilizar a Big Pharma por envenenar nosso povo, ajudaremos a tornar a América saudável novamente.”
A frase faz referência direta ao movimento “Make America Healthy Again” (MAHA), liderado por Kennedy Jr.
Farmacêuticas reagem
A Kenvue classificou a ação como “infundada” e disse estar “profundamente preocupada com a perpetuação de desinformações sobre a segurança do acetaminofeno”. Segundo a empresa, o Tylenol “continua sendo a opção mais segura de analgésico para gestantes, quando usado conforme orientação médica”.
A Johnson & Johnson, por sua vez, destacou que vendeu sua divisão de produtos de consumo em 2023, transferindo “todos os direitos e responsabilidades” da marca à Kenvue.
Frascos de Tylenol expostos em uma farmácia de Nova York, em 5 de setembro de 2025.
REUTERS/Kylie Cooper
O que dizem as agências reguladoras
Em setembro, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) anunciou que revisaria o rótulo do Tylenol após alguns estudos indicarem “possível associação” entre o uso de acetaminofeno, substância do medicamento, na gravidez e distúrbios como autismo e TDAH.
No entanto, a própria agência enfatizou que “não há relação causal comprovada” — e o medicamento segue sendo o único indicado para controlar febre em gestantes.
A Comissão Europeia também afirmou não existirem evidências científicas que sustentem a relação entre o uso de paracetamol durante a gravidez e risco de autismo.
Consenso médico: seguro quando usado corretamente
O Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia (ACOG) afirma que os estudos disponíveis “não mostram evidências claras de uma relação direta entre o uso prudente de paracetamol em qualquer trimestre e problemas de desenvolvimento fetal”.
Já o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) classifica o medicamento como “a primeira escolha” de analgésico na gestação.
Especialistas ouvidos pelo g1 reforçam que os estudos existentes são observacionais e sujeitos a distorções.
“Associação não é o mesmo que causalidade. Quando retiramos fatores de confusão — como febre, infecções ou genética —, o vínculo entre o uso de paracetamol e o autismo desaparece”, explica o psiquiatra infantil Guilherme Polanczyk, da Universidade de São Paulo.
O maior estudo recente, publicado na revista científica JAMA, analisou 2,5 milhões de crianças na Suécia e concluiu que, ao comparar irmãos da mesma mãe, não há diferença significativa de risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual associada ao uso do medicamento.
Diagnósticos em alta, mas não necessariamente casos
Nos Estados Unidos, a prevalência de diagnósticos de transtorno do espectro autista (TEA) passou de 1 em cada 150 crianças em 2000 para 1 em 36 em 2020, segundo o CDC. Mas o aumento é atribuído a critérios diagnósticos mais amplos e à maior busca por avaliação e suporte educacional, não a um surto real de novos casos.
“Hoje o diagnóstico é feito com critérios diferentes e inclui pessoas com quadros leves. Há mais diagnósticos, mas não necessariamente mais autismo na população”, diz Polanczyk.
Pesquisas indicam que a genética responde por 85% a 90% da origem do autismo, e fatores ambientais representam o restante — o que reforça que medicamentos como o paracetamol não poderiam alterar causas genéticas.
Desinformação e uso político do autismo
Para Arthur Ataide Garcia, vice-presidente da associação Autistas Brasil e pesquisador em desinformação, o governo Trump vem “usando o autismo como combustível para uma cruzada política que nada tem a ver com ciência ou inclusão”.
“É sintomático quando figuras como Kennedy Jr. descrevem autistas como pessoas incapazes ou improdutivas. Esse tipo de discurso reforça estereótipos cruéis”, critica.
Garcia alerta que o Brasil lidera na América Latina a disseminação de falsas causas e curas para o autismo, muitas delas importadas do debate norte-americano.
Leucovorina: nova polêmica
Além da polêmica sobre o Tylenol, Trump e Kennedy Jr. vêm promovendo o uso da leucovorina — uma forma de ácido fólico usada em quimioterapia — como possível tratamento para o autismo, sem respaldo científico.
A FDA aprovou recentemente uma versão do medicamento, mas especialistas, como Polanczyk, alertam que as evidências ainda são limitadas:
“Não é seguro afirmar que a leucovorina ou qualquer outro remédio seja capaz de tratar os sintomas principais do autismo. O autismo é extremamente heterogêneo — duas pessoas podem ter causas genéticas e respostas diferentes a qualquer intervenção.”
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